Elas que lutem: isolamento social no Brasil e a negação de direitos às mulheres negras em tempos de pandemia



 

Elas que lutem: isolamento social no Brasil e a negação de direitos às mulheres negras em tempos de pandemia

 

No décimo primeiro dia do mês de março de dois mil e vinte a Organização Mundial de Saúde – OMS, declarou a pandemia do Covid-19, e não demorou para que os efeitos chegassem ao Brasil, exigindo das autoridades públicas medidas para o seu combate e contenção. Dentre as medidas indicadas como prevenção se destacam a intensificação da higiene pessoal e o isolamento social, este último ganha destaque num país como o Brasil, que possui uma extensão territorial ocupada por mais de 211 milhões de pessoas com uma grande densidade populacional em algumas localidades, razão pela qual o não isolamento nesta realidade pode gerar consequências inimagináveis diante de uma doença tão contagiosa.

 

O isolamento social inclusive, se apresenta como um mecanismo que permite ao sistema de saúde pública a estruturação para recepcionar grandes demandas, sobretudo daqueles grupos sociais mais vulneráveis que não poderiam arcar financeiramente com as custas de um cuidado médico particular.

 

Com isso, a decisão das autoridades pela adoção em larga escala do isolamento social horizontal, como medida de prevenção ao contágio, estampou o histórico de desigualdade social que existe no país desde o seu ‘descobrimento’. O que se observou após o pedido de isolamento foi uma divisão entre aqueles que poderiam, sem grandes prejuízos, se isolar socialmente em prol de sua saúde, devido a sua posição social, daqueles em que o isolamento significa prejuízos irreparáveis a suas condições de sustento e sobrevivência, que diante de suas experiências são tão danosos quanto um vírus contagioso.

 

O medo da morte para quem agoniza diuturnamente pela busca da sobrevivência, às margens do capitalismo e nas ‘veias abertas da América Latina’, parece não ter a mesma potência diante daqueles que podem se isolar com a certeza da continuidade de suas posições dentro de uma sociedade extremamente desigual.

 

Diante disso, o que se pode perceber é o que o escritor José Saramago chamou de “cegueira seletiva”, onde alguns indivíduos de forma seletiva ignoram a dificuldade de prevenção de determinados que grupos sociais, sendo questionável qual a solidariedade que se espera em um cenário onde o pertencimento social parece mensurar o valor de uma vida.

 

A histórica segregação social brasileira, que atinge fortemente aqueles que historicamente foram marginalizados pela lógica colonial, tem como vítimas principais as mulheres negras, fato que nos leva a refletir a necessidade de pensarmos em uma perspectiva “decolonial” e feminista.

 

Em Salvador-BA, durante reportagem veiculada no último dia 23 de março, na TV Bahia, foi exibida uma entrevista com 4 (quatro) mulheres negras que esperavam o ônibus em uma localidade daquela capital, isto em meio ao isolamento social recomendado pela autoridade municipal, onde 3 (três) delas trabalhavam como empregadas doméstica e estavam se dirigindo aos seus locais de trabalho enquanto que uma delas trabalhava como vendedora ambulante naquele mesmo ponto de ônibus.

 

A reportagem demonstra a realidade dessas pessoas, no caso mulheres negras, que por necessidade financeira precisam cumprir determinações que põem em risco sua saúde, expondo nitidamente a segregação social existente no país.

 

São as mulheres negras, o grupo social que mais sofre com o racismo estrutural, conforme bem pontuou Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista do movimento social negro brasileiro, “ser mulher e negra nessas terras é experimentar essa condição de asfixia social”.

 

O quadro social exposto, portanto, reforça o fato de que para alguns não é facultado o isolamento social horizontal, eis que, descumprir a determinação do seu empregador parece lhes trazer consequências mais duras do que descumprir as recomendações das autoridades públicas, isto porque da venda de sua força laboral depende o sustento seu e dos seus. Por isso, conforme nos ensinou Bell Hooks, ser oprimido significa, a ausência de escolhas.

 

Por isso, como a mulher negra é quem mais sofre com a segregação racial na sociedade brasileira, isto se torna ainda mais evidente em momentos de crise, pois são estas mulheres que compõem o grupo social que possui maior dificuldade de sair do padrão diuturno – modelo de trabalho – modelo de vivência - que lhes é imposto. Atestado disso foi a morte da empregada doméstica no Rio de Janeiro, que contraiu o vírus da patroa que, sequer a avisou, sobre estar doente, fato que foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação, por ter sido uma das primeiras mortes por Coronavírus registradas no país.

 

Neste momento se tornam relevantes as lições do importante filósofo Nelson Maldonado Torres, pesquisador em relações étnicas raciais, que conclui apontando que o colonialismo é uma lógica que permanece embutida na modernidade, significa dizer que mesmo com o processo de independência brasileira ou com o processo de abolição do sistema escravocrata, aquela lógica segregacionista se mantém viva e presente, porém ressignificada, o que o autor chama de “decolonialidade”.

 

Maldonado faz ainda uma excelente observação no que tange ao gênero, apontando que os corpos femininos são vistos como forma de permitir a reprodução do inimigo, lhes conserva a memória e por isto é do senso comum que o colonizado sofra diversas barbáries como torturas e outras tentativas de neutralização; neste cenário se percebe o racismo estrutural que neutraliza a mulher negra em diversos momentos lhes tolhendo oportunidades e definindo onde e como sua força braçal deve ser comercializada, a mantendo subalterna diante de um Estado que parece omisso em lhes garantir seus direitos.

 

Neste momento, é importante uma pergunta, que deve soar latente aos olhares mais atentos: Existe necessidade que uma empregada doméstica se arrisque a contrair um vírus potencialmente contagioso, num transporte coletivo, arriscando a sua vida, a de sua família e a família dos seus empregadores, diante da recomendação de especialistas para que sigam em funcionamento apenas os serviços essenciais?

 

Talvez a posição social original de algumas pessoas faça com que essas ainda estejam com os olhares cobertos pelo que o professor John Rawls, chamou de “véu da ignorância” onde as nossas posições sociais nos levam, muitas vezes, a posições egoístas de perpetuação de status. A reflexão a ser feita é: como podemos mudar este cenário no contexto atual?

 

Por isso, sabemos que não é facultado a todos e todas escolher permanecer em segurança em suas residências. O empregador por vezes imerso na lógica colonial ou perdido em sua posição original, precisa compreender que o empregado é quem mais necessita do isolamento social, uma vez que é o usuário primário do sistema de saúde público.

 

Neste sentido, a pandemia nos traz um momento de diversas reflexões, inclusive acerca da necessidade do que Nelson Maldonado chamou de ‘giro colonial’, que nada mais é que o indivíduo compreender os simbolismos que os cerca, bem como, do seu lugar na sociedade entender de que forma pode atuar para que tais desigualdades não mais se sustentam.

 

E por fim, importante a fala marcante da ativista Ângela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo".

 

* Alex Antônio dos Santos da Gloria - Membro do Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves-CCRIM

* Rafaela de Lima Nascimento - Membra do Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves-CCRIM