O Direito à Saúde da População em Privação de Liberdade Frente às Medidas de Contenção do coronavírus (Covid-19)
Recentemente, o mundo foi surpreendido com a gravidade da propagação do coronavírus (Covid-19), que já é considerada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e culminou no fechamento de fronteiras, aeroportos, rodoviárias, além da adoção de medidas sanitárias de higienização das mãos com água e sabão, álcool gel e na adoção do isolamento social (ou quarentena), como principais estratégias a fim de evitar a transmissão do vírus entre as pessoas.
Não restam dúvidas, portanto, quanto à urgência na adoção de medidas de natureza preventiva e de contenção do novo vírus. Mas como assegurá-las às pessoas em situação de confinamento, que se encontram sob a tutela do Estado, já reclusas e vulnerabilizadas pela situação precária e desumana dos presídios e unidades socioeducativas no Brasil?
Atualmente, possuímos a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 812 mil presos e taxas extremamente elevadas de doenças transmissíveis e não transmissíveis em ambiente prisional. Os agravos incluem doenças como tuberculose, pneumonia, diabetes, hipertensão, câncer e HIV. Condições de saúde que inserem um grande número de pessoas presas no chamado grupo de risco do coronavírus.
Em razão da pandemia de infecção pelo novo coronavírus, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), requerendo a prisão domiciliar e a liberdade condicional dos grupos mais vulneráveis ao contágio pelo Covid-19, assim como a adoção imediata de medidas de prevenção à disseminação do vírus no sistema prisional e socioeducativo. Em face disso, o ministro Marco Aurélio conclamou os juízes de Execução Penal a adotarem junto à população carcerária procedimentos preventivos do Ministério da Saúde para evitar o avanço da doença dentro dos presídios.
Dentre as medidas sugeridas em portaria conjunta expedida pelos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e Ministério da Saúde tem-se, basicamente, a suspensão das visitas sociais dos presos, ausentes quaisquer medidas compensatórias de preservação à integridade física e à saúde mental dos mesmos, ou mesmo a ampliação das condições de higiene e saúde nas unidades prisionais.
O IDDD, por sua vez requereu, entre outros pleitos: a liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a 60 anos; a substituição da prisão provisória por medida alternativa para os casos que envolvam delitos praticados sem violência ou grave ameaça; a progressão de pena a quem, atendido o critério temporal aguarda exame criminológico.
Para além das medidas judiciais assinaladas, importa destacar, que no campo da saúde, as ações voltadas para a população carcerária no Brasil, desde 2014, são norteadas pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP. Essa política objetiva a garantia do direito à saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a todas as pessoas em situação prisional. Prevê, portanto, o acesso à rede de atenção à saúde, a melhoria das ações de vigilância sanitária e condições mínimas de higiene pessoal, dentre outras medidas estratégicas essenciais à implementação da premissa constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. No tocante aos jovens em cumprimento de medida socioeducativa, as mesmas diretrizes são estabelecidas pela Política de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAISARI).
Ambos os documentos, frisa-se, dispõem sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde integral de pessoas em privação de liberdade e são considerados marcos no processo de implementação de direitos sociais positivados no ordenamento brasileiro, como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Execuções Penais.
O fato é que a realidade das condições de saúde, acesso e uso dos serviços sanitários pela população encarcerada no país, não demonstra outra coisa, senão a omissão do Estado, operando de forma necropolítica um sistema de governo em que se define quem deve viver e quem deve morrer, se atribui às pessoas privadas de liberdade o status de “mortos-vivos” e nega-lhes o mínimo existencial.
Essa constatação tem se tornado ainda mais evidente durante a Pandemia pelo Covid-19 e dada à análise do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), que em pesquisa realizada no ano de 2019, demonstra que as prisões estão quase 70% acima da capacidade de lotação e menos da metade delas possuem, sequer, posto médico.
O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 assegura que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Frente ao estado de calamidade pública, é imprescindível que medidas concretas sejam adotadas para mitigar os riscos do avanço do coronavírus vez que, ao não prestar a efetiva e gratuita assistência à saúde da população carcerária, o Estado transgride direitos humanos e fundamentais.
Em se tratando dos presídios, as preocupações relativas à proliferação do coronavírus tornam-se ainda mais latentes. Pesquisas mostram que a população carcerária tem 30 (trinta) vezes mais chances de contrair tuberculose, em razão das condições insalubres das prisões. São espaços, fechados, com circulação de ar diminuída e acesso precário à água, produtos de higiene e limpeza, logo, potenciais espaços de contaminação pelo Covid-19, sem assistência médica e condições de isolamento individual.
A situação excepcional exige, pois, medidas excepcionais, haja vista que os prognósticos sobre a evolução da pandemia são incertos nas unidades prisionais e socioeducativas. Todavia, medidas como a criação de protocolos de atendimento médico, disponibilização de produtos de higiene pessoal e proteção individual e ações compensatórias às suspensões das visitas, além de medidas judiciais que contemplem liberdade condicional para idosos e portadores de doenças crônicas, substituição da prisão preventiva pela domiciliar para todas as pessoas presas por crimes cometidos sem violência e grave ameaça (com prioridade para mulheres, sobretudo idosas, gestantes, lactantes e mães de crianças com idade até 12 anos), são fundamentais para assegurar a população prisional, não apenas o direito à saúde, mas o direito à vida e à existência.
* Adson Vieira de Souza - Membro do Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves / CCRIM / UFBA.
* Thágila Tainá Moreira B. Rodrigues - Membra do Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves/ CCRIM / UFBA.